terça-feira, 7 de maio de 2024

Padecimentos

Desta vez retomo as publicações sobre o convento de S. Domingos do Porto já elaboradas anteriormente, que se encontravam alojadas no seu antigo e específico blog.

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Instalados que estavam os frades de S. Domingos junto do pequeno burgo do Porto e iniciadas as obras de construção/adaptação das casas e igreja cedidas pelo bispo, seria de esperar que esta nova casa florescesse no ministério para a qual se criara. Contudo cedo, muito cedo, ainda durante aquele ano, foram os frades envolvidos em querelas com o clero local tal como os franciscanos que já sofriam a ira daqueles prelados desde pelo menos o ano anterior[1]. Quer para uma quer para a outra ordem mendicante serve bem as explicações que frei Manuel da Esperança e frei Luís de Cacegas/Sousa dão nas suas respetivas crónicas. No entanto opto aqui pelas palavras do dominicano do séc. XVIII que escreveu o livro de Foral do seu convento:

Pelos anos de 1238 pouco mais, ou menos vendo o cabido desta cidade, a muita devoção, que os moradores dela, que naquele tempo eram todos fregueses da Sé, tinham aos religiosos deste convento, de sorte, que desamparando a sua paroquial todos se queriam sepultar no nosso convento concorrendo a esta igreja com suas obradas e esmolas, e que estes interesses lhes faltavam lá na sua catedral, começaram a inquietar os religiosos com tanta paixão, que fazendo grandes queixas ao bispo D. Pedro Salvador, este insuflado pelo cabido começou a proceder contra os religiosos com tanta tirania, que logo lhes proíbiu o pregar, e confessar, e dizerem missa, embargando-lhes as obras da igreja, e convento, pondo excomunhão a todos os que trabalhassem nelas, revogando todas as doações feitas ao convento, anulando também todas as compras, que os religiosos tinham pago metendo-se de posse de algumas propriedades, que já possuía o convento, enfim buscando todos os meios com que mais molestasse aos religiosos até que desesperados deixassem esta cidade, e todo o seu bispado, querendo assim lançar fora de si, e seu bispado aos mesmos, que com tanto zelo, e instância tão honradamente chamou para a sua companhia...

Ainda em 1238 os dominicanos remetem uma missiva para Roma, dando conhecimento da situação e pedindo expedita resolução. Gregório IX reagiu enviando um breve ao arcebispo, deão e chantre da arquidiocese de Braga para que, como mediador, colocasse um ponto final na situação. Apenas quando este fez ver a D. Pedro Salvadores que teria de fazer o que o Papa ordenava é que foram enviados junto dele os seus representantes, alcançando-se finalmente um acordo[2].


Mas também o rei D. Sancho II quis ajudar os frades. Em janeiro de 1239 passou um documento onde refere que mandava fazer o convento em prol da sua alma, recebendo-o por isso debaixo do seu amparo, onde estipulava igualmente as sanções a quem de alguma forma prejudicasse os frades e/ou os seus criados/operários. Este diploma, estou em crer, insere-se na intensa disputa existente entre a Mitra e a Coroa sobre qual era o verdadeiro término do couto que D. Teresa doara ao Bispo do Porto em 1120. Disputa essa que, se adormecida durante o reinado de D. Afonso II, não estava de todo extinta, pelo contrário, vai-se prolongar bem para lá da época que aqui nos interessa! É que, quer franciscanos, quer dominicanos, pretendiam instalar-se (como efetivamente aconteceu) numa área entre o rio da Vila e o rio Frio, terreno disputado por ambos os poderes[3].



A travessa da Bainharia é o único resquício que nos ficou da rua da ponte de S. Domingos, que remontava ao início do século XVI. Atravessando essa mesma ponte (sensivelmente onde na foto se vê o tuktuk), subia-se a ladeira chegando no seu topo ao convento dominicano. No século XIII, este caminho para Miragaia, ainda uma rural azinhaga, fez com toda a certeza parte do calvário dominicano de indas e vindas à Sé, na tentativa de solucionar os problemas que o seu suposto protetor lhes havia criado...


Mas foi a doação da rainha D. Mafalda[4] em junho de 1239 de uma importante igreja que lhe pertencia, que fez com que o senhor do Porto acalmasse os ânimos em relação aos dominicanos. Com essa doação - igreja de Santa Cruz de Riba Leça, hoje de Santa Cruz do Bispo - vieram todas as suas posses e rendimentos. O motivo é precisamente «in recompensationem graviminis, si in aliquo ex praedicatorum Fratrum commorantione Ecclesia Portugallensis fuerit aggravata»; ou seja, para que o bispo e restantes cúria episcopal não ficassem sem os seus rendimentos garantidos[5].


Depois de sanadas as divergências que acima resumi, poderemos dizer que em 1241 se aquietaram finalmente os frades no sítio que o bispo lhes cedera. Quanto a D. Pedro Salvadores, ainda que tenha passado à história como perseguidor quer dos dominicanos quer sobretudo dos franciscanos; é notável que tivesse, em testamento, nomeado para executor das suas últimas vontades o prior dos Pregadores e fr. Gualter (franciscano?). Este prelado morreu em 1247, não sem dois anos antes ter feito doação ao convento de duas fontes suas que nasciam nas hortas da Cividade (onde mais tarde foi erguido o convento de S. Bento das Freiras e depois a estação de S. Bento), conforme descreve o frade anónimo do livro do Foral de 1728:

...no ano de 1245 também nos deu duas fontes das quais uma nasce nas hortas, que hoje são das freiras de S. Bento ... que chamam da Samaritana, e a outra nasce de baixo do coro das ditas religiosas, da qual temos a área entre o primeiro, e segundo botaréu, que está da sua portaria até às escadas da entrada da igreja, cuja doação nos confirmou o Sr. bispo D. Vicente seu sucessor, no ano de 1293...

E agora sim, na próxima publicação vamos embrenhar-nos no latim medieval dos contratos notariais! Prometo que será apresentado em "doses" suaves.[6]

Viriato


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1 - As primeiras bulas de censura enviadas pelo papa Gregório IX - uma ao Bispo a outra ao Cabido - datam de 25 de maio e 23 de junho de 1237 respetivamente. Embora a primeira carta que o mesmo papa enviara ao bispo do Porto D. Martinho Rodrigues(†1235) datasse de 20 de maio de 1233, não é certo que os franciscanos se tenham instalado logo nesse ano.

2- Provavelmente estes desenvolvimentos deram-se já em 1239, não obstante o Breve papal datar de setembro de 1238.

3- Corresponde aproximadamente ao terreno compreendido entre a rua Mouzinho da Silveira e a igreja de S. Pedro de Miragaia. O rio da Vila formava-se de dois pequenos riachos que se uniam em frente aos Congregados e rio Frio nasce no Carregal, vindo ao Douro pelo vale das Virtudes.

4 - D. Mafalda, filha de D. Sancho I e tia de D. Sancho II, tinha o título de rainha por ter sido rainha de Castela, ainda que por um pequeno período de tempo, antes de ser repudiada pelo marido. Voltou a Portugal dando entrada no mosteiro cisterciense de Arouca, onde jaz.

5 - Após esta doação, entre os anos de 1239 e 1247, vários particulares com bens adstritos à mesma igreja foram passando as suas propriedades para a mão da sede portuense. Pelo menos até 1241 os motivos das doações são, em várias: «ob gratiam Fratrum Predicatorum» e numa «ad preces fratrum predicatorum».

6 - Frase que faz agora apenas meio sentido, mas era adequada aquando da publicação original (28/11/2018).


Bibliografia: Scriptores et Notatores - produção documental da Sé do Porto 1113-1247, da Dr.ª Maria João Oliveira e Silva.

sábado, 27 de abril de 2024

A primeira garagem do Porto?

Se é verdade que a garagem de O Comércio do Porto foi a primeira grande garagem da nossa cidade, como bem afirma o ilustre arqueólogo e divulgador da história e património, Joel Cleto; ainda assim e sendo a sua construção do início da década de 1930, não foi certamente pioneira. De facto, quando ela surge o automóvel tinha já um importante e crescente peso na sociedade da época, ao ponto de se justificar a existência de um aparcamento daquela magnitude. Mas nesta publicação, que já andava há anos bons em ideia, trago-vos um pequeno apontamento sobre aquela que poderá ter sido a primeira garagem existente na cidade, que começava a dar os primeiros passos na moderna vida automobilística sem a qual não conseguimos hoje conceber o nosso mundo.


É o caso que, em outubro de 1907, a recentemente constituída sociedade cooperativa Automotora do Porto entrava na câmara com um requerimento para a construção de uma «garage para automóveis, em um terreno situado entre as ruas Duquesa de Bragança e Malmerandas». Aprovado em dezembro, desde logo se terá dado início à sua construção num terreno entre duas ruas, hoje com os nomes de D. João IV e Dr. Alves da Veiga (o terreno era propriedade dos vizinhos da frente, na rua D. João IV). Lendo a descrição constante do projeto submetido à câmara em 1907, tiram-se curiosos apontamentos sobre a construção original, da qual, aparentemente, tudo o que subsiste se reduz às fachadas.


O edifício tem, pelo lado da rua D. João IV, 29,20m de largo e em Alves da Veiga 26,75m. O seu comprimento total é de 90m a norte e 85m a sul, formando por isso um ligeiro trapézio. Na origem, tal como hoje, todo ele seria coberto. A entrada principal situava-se nesta mesma rua, onde existia a garagem e uma «exibição de automóveis e acessórios de automobilismo». No lado oposto estacionariam as «várias oficinas para pequenas reparações de carros», com um andar superior a elas para o «escritório e outras dependências da sociedade e vários gabinetes de toillete que são indispensáveis para a limpeza das pessoas que chegam à garagem, sujos de pó». As fachadas não eram portanto idênticas, uma vez que em Alves da Veiga teria o tal andar ao centro, suportado por colunas de ferro, num comprimento de 22m e largura 9,50m.

esta foto mostra-nos com algum grau de certeza a garagem e foi tirada num momento em que desempenhou outra função que não a sua habitual (seria para o evento do Futebol Clube do Porto que ali teve lugar em novembro de 1908?) . a imagem é do A.M.P. (ver aqui)


Erguido já no mais moderno cimento e com um pé direito de 6,5m, a estrutura era coberta por telha, em 3 cumes, com lanternins equipados com persianas que podiam ser erguidas, para arejamento. As colunas de ferro que suportavam a cobertura tinha 6 metros de altura. O chão era em betonilha na parte em que os automóveis parassem e em calçada à portuguesa na zona onde os mesmos eram lavados e consertados. A oficina, equipada para efetuar reparos de carpintaria, serralharia e pintura, era isolada em tijolo e ficava no ângulo sudoeste da garagem, entre a rua Dr. Alves da Veiga e a escada de comunicação para os escritórios no andar de cima, cujas divisórias seriam construídas de «tabique dobrado coberto a cal»

segunda imagem do A.M.P. da garagem (aqui), tirada para o lado oposto


Estes apontamentos, embora curtos, não deixam de nos transmitir pequenas frestas de história neles próprios. É o caso da referência ao pó com que os automobilistas forçosamente trariam consigo, provável consequência das estradas em macadam e terra batida então existentes. Igualmente as referências a oficinas de carpinteiro e serralheiro deixam antever a ainda imberbe tecnologia das carroçarias dos automóveis, indústria que nas primeiras décadas do século passado estava a dar os seus primeiros passos rumo à massificação. Curioso é igualmente notar que, embora as fachadas fossem construídas em cimento e nas oficinas se usasse o tijolo (de que tipo?); a compartimentação do primeiro andar se processava pelo velhinho tabique, que ainda hoje muito vemos por aí em edifícios velhos degradados ou em pequenas parcelas recuperadas, como motivo decorativo.


Importa também referir que as imagens acima estão indicadas, no AHMP, como mostrando o mercado Ferreira Borges. Mas creio que saltará à vista que tal é impossível. Ainda que não se possa inequivocamente afirmar que se trata da Garagem Automotora do Porto, tudo aponta para que assim seja.


Finalizo deixando-vos uma ligação para o projeto original da garagem (aqui), bem como uma imagem do edifício na atualidade; aliás ainda utilizado na finalidade para a qual foi construído!

entrada pela rua Alves da Veiga - antes Malmerendas - em 2015


Esta publicação foi originalmente colocada no meu antigo blogue A Porta Nobre, em 16.06.2020. À época, as imagens do Arquivo Municipal do Porto ainda se encontravam classificadas como sendo do mercado Ferreira Borges. Recordo, pouco tempo após a publicação, as referidas imagens terem tido a sua legenda retificada (ao que foi informado através de um comentário na publicação, por responsável do mesmo). Mais recentemente tive oportunidade de ver uma imagem do mercado Ferreira Borges da mesma época, onde fica definitivamente claro este ponto. Ela encontra-se neste site do Dr. Manuel Martins Ferreira.

domingo, 14 de abril de 2024

Ramalho e o mosteiro

No final do século XIX a cidade tratava já de construir a sua estação central de caminho de ferro em S. Bento, estação que, não apoucando esteticamente o lugar, roubou o nome e o espaço a um monumento irremediavelmente perdido: o complexo monacal de S. Bento mandado erguer pelo rei Manuel I em 1518. Foram várias as vozes que se levantaram à época contra a catástrofe, mas nada pode obstar a cegueira devoradora (ontem e hoje, quando um governo toma uma decisão de destruição, ela torna-se quase sempre escrita na pedra!).
 
Mas houve uma voz, uma conhecida voz, que não foi da mesma opinião. Falo de Ramalho Ortigão, que numa missiva enviada à rainha D. Amélia em 6 de outubro de 1896, opina desta forma:
«(...) Em vez de estabelecer a estação central dos caminhos de ferro do Porto no lugar que se escolheu, teria sido de certo mais sensato optar por lugar em que não houvesse de se demolir uma igreja para edificar uma gare. Esse plano foi porém aprovado, e para o concluir acham-se feitas obras importantes e mui dispendiosas. O extenso túnel que une Campanhã com o largo da Feira de S. Bento está feito, e abre a sua profunda boca para a igreja, que tem fatalmente de devorar, porque ainda aproveitando o espaço ocupado pela igreja, a gare ficará pequena. Não havendo meio de salvar a Igreja sem uma perda enorme de tempo e de dinheiro resta considerar se a conservação desse edifício no lugar em que se acha vale a pena de um tal um tal sacrifício, ao qual a população do Porto se não sujeitaria sem os mais clamorosos protestos. Respondendo a este ponto, eu digo sinceramente a Vossa Majestade que a importância arqueológica do monumento de que se trata está bastante abaixo do conflito que suscita. O grande e sumptuoso templo da fundação do rei D. Manoel, desapareceu inteiramente devorado por um incendio»

no AHMP podem-se encontrar algumas imagens desta igreja . a que apresento acima, identificada como sendo da sacristia, toda me leva para o coro alto...


Ora aqui o leitor já adivinhou, ou quase, pois podia tratar-se de ironia, qual a opinião de Ramalho Ortigão em relação à igreja. Ressalve-se contudo, que logo no início do parágrafo o autor parece estar completamente contra a escolha do local. Mas prossigamos na transcrição: «A igreja atual, construída no século passado é, em todos os pontos de vista, banal! O seu arquiteto, que era da aldeia de Santa Cruz do Bispo e recebeu 120 mil reis pelo seu risco*, era um mestre de segunda ordem, ao lado d’outros que na mesma época trabalhavam no Porto. A arte amovível que a igreja encerra é também de pouco interesse. A pintura dos retábulos é incaracterística. Um sofrível arcaz na sacristia, solido cadeiral de boa marcenaria em madeira do Brasil no coro, uma curiosa moldura rococó num mau quadro representando a Santíssima Trindade, é tudo quando lá se encontra. (...) Dá-se demais um facto que responde a muitos escrúpulos, talvez a todos: a Confraria de Cedofeita, em cuja circunscrição há grande falta de igrejas, sendo pequeníssima a da paróquia, prontifica-se, sendo-lhe dada a pedra da igreja de Ave-Maria, a reedifica-la tal e qual ela está, em uns terrenos devolutos à rua da Carvalhosa.»**
 
O autor continua a sua missiva, apontando como a mais natural escolha da proteção da rainha, a igreja de Santa Clara. Ideia que não sendo sua, pois que partira do Centro Comercial do Porto em petição enviada para que ali se estabelecesse o dispensário, veio a originar o Dispensário Rainha D. Amélia. Ramalho prossegue uma boa parte da missiva explicando os lavores de arte do convento das clarissas assim como a paisagem que dos seus mirantes se podia fruir. Embora excelentes, essas descrições fogem já ao objetivo desta publicação.

capitel (?) da antiga igreja de S. Bento de Avé-Maria, hoje colocado nas traseiras da igreja nova de Cedofeita


Confesso que fiquei como que chocado com as observações de Ramalho Ortigão. Sempre me habituei a ver as imagens que o fotógrafo Alvão nos deixou sobre esta igreja, que parecem mostrar um templo merecedor de ser preservado. Como é de geral sabido, existiu, em 1893, uma proposta apresentada ao Ministro das Obras Públicas de então, Bernardino Machado, pela Irmandade de S. Bento de Avé-Maria do Porto; no intuito de salvar igreja da destruição, bem como a sua sacristia e outros edifícios anexos. Nada vingou.
 
Resta-me informar que a missiva de onde colhi estas notas surge transcrita n' O Tripeiro de outubro de 1954, um apud - termo prazeroso aos académicos - da obra O Grupo dos Cinco - Dramas Espirituais, por P. Moreira das Neves (1945).
Viriato


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* Manuel Álvares
** Curiosidade: foi nesta igreja de curta existência que casou a escritora Agustina Bessa Luís
NOTA: publicação originalmente colocada no blog a 4 de março de 2023.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Sacos de café pendurados na torre dos Clérigos?

Conforme prometido na publicação anterior sobre a Meridiana, coloco aqui algumas palavras que portuenses de há um século atrás (1908) nos arquivaram nas páginas d' O Tripeiro sobre um outro mecanismo, também ele dependente da Torre dos Clérigos. Tudo começou com uma pergunta colocada por um leitor no n.º 10 deste secular periódico que diz: «Possuo uma gravura antiga onde se vê a Torre dos Clérigos com dois sacos de café, salvo seja, pendurados fora da varanda superior, como indicadores de qualquer coisa. Em pequenito ouvi dizer que estava instalada uma meridiana na Torre.» Ora, em relação à Meridiana tem só o leitor atual que reler a publicação anterior; por agora pretendo dar a conhecer as respostas oferecidas a este leitor de há cem anos atrás, para que também nós cem anos depois possamos ler o testemunho de quem ainda conheceu o tema. Para isso recolho parte de três respostas que surgem no número imediatamente a seguir ao da pergunta n' O Tripeiro:

1.ª) «Não eram sacos de café o que o Sr. B. S. vê na antiga gravura que possui, representando a Torre dos Clérigos. Eram bandeiras, como poderiam ser balões de folha de flandres, ou de zinco pintado. Eu explico: Até 1856, pouco mais ou menos, o único meio de transporte para a correspondência do Porto com a Grã-Bretanha, eram os paquetes da companhia inglesa P. & O. (Peninsular and Oriental), que apareciam à vista da nossa barra de quinze em quinze dias. Os vapores, naquela época, eram de pequenas dimensões e pouca força, comparados com os que se empregam atualmente na navegação transatlântica; por isso, não se podendo contar, senão aproximadamente, com o dia e hora da chegada, e para obtemperar às conveniências do comércio, que tinha interesse em receber a correspondência no dia da chegada, foi combinado, entre a direção da Associação Comercial e o diretor do correio, com consentimento da Irmandade dos Clérigos que, logo que, pelo telegrafo comercial, houvesse noticia de estar à vista o paquete, fosse colocado um sinal na Torre dos Clérigos, que era avistada de quase todos os pontos da cidade, avisando os comerciantes para mandarem buscar a correspondência ao correio, que era então no extinto convento das Carmelitas [...].


O Iberia de 1836, um dos primeiros paquetes da P&O, que regularmente paravam na barra do Douro 

Aquele sinal consistia, para os dias de bom tempo, em duas bandeiras com as cores da Companhia P. & O. pendentes de um travessão de cada lado (norte e sul) do varandim superior da Torre; e, para os dias de chuva, em dois balões de lata, pintados com as mesmas cores.
Os caixeiros, a quem competia o serviço de ir ao correio esperar pela distribuição da correspondência para a levarem a casa dos patrões, tinham ordem de estar atentos à colocação do sinal, nas proximidades da chegada dos paquetes, que principalmente de inverno, demoravam um ou mais dias, o que os fazia arreliar, porque os privava de algumas horas de descanso ou de recreio.
Os paquetes, apesar de pequenos, não podiam entrar a barra do Porto; por isso havia uma catraia do sota-piloto Manuel Francisco, encarregada de ir fora da barra levar e receber as malas de correspondência e alguns passageiros, que houvessem de embarcar ou desembarcar e que, naquele tempo, eram raros: pois com o mar agitado era muito arriscada a entrada ou saída da catraia.
Muitas vezes sucedia a catraia entrar ao fim da tarde, obrigando os empregados do correio a irem fazer a separação de noite, serviço esse que algumas vezes levava até às 10 ou 11 horas».

De facto nos vários jornais que já tive a oportunidade de consultar na BPMP muitas vezes se vê uma pequena notícia referindo a passagem do paquete e em algumas delas este nem parava porque o tempo estava mau. Tempos muito diferentes dos que hoje vivemos...

Segue-se:
2.ª) «O que o Sr. B.S. julga ser dois sacos de café, não o são, pois que nessa época a Cristina, da Cancela Velha, era a única que tinha o monopólio do saboroso e aromático produto, não tendo como rival o café da Brasileira, e por essa razão não precisava de réclame para chamar a freguesia ao seu estabelecimento bem conhecido na cidade e até nas províncias.
São, sim, dois sinais com bandeiras, indicando a entrada ou o estar para entrar vapor ou, como hoje se diz, paquete trazendo correio.»

E para finalizar:
3.ª) «(...) Os tais dois sacos de café, salvo seja, que era costume exibirem-se às vistas do público, já então respeitável, dependurados nas extremidades de duas pequenas varas, ou paus, colocadas horizontalmente na última varanda da Torre dos Clérigos, serviam para anunciar que era dia de paquete, isto é, para prevenir quem tivesse de mandar correspondência pelo paquete para o estrangeiro, principalmente para o Brasil, que devia entrega-la nesse dia no Correio Geral, que então era no largo do Correio.»

Como se vê, esta última resposta e a primeira não são propriamente coincidentes. Haverá alguma que fuja à verdade? Ou simplesmente reportar-se-ão a épocas diferentes? A partilha do conhecimento é uma virtude da qual espero que o leitor sabedor esteja investido.
Viriato


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NOTA: Publicada originalmente em 14.02.2017 e agora ligeiramente revista.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

A meridiana da torre dos Clérigos

Já ouvira há tempos falar deste mecanismo que esteve instalado no topo da Torre dos Clérigos, sobretudo dos escritos arquivados nas mais antigas páginas d' O Tripeiro por quem ainda dela se lembravam. Pela meridiana acertaram os portuenses durante algumas décadas os seus relógios. Depois de subsistir na torre durante largos anos, esteve a engenhoca instalada na casa mais alta (qual?) da rua 31 de Janeiro, onde ainda existiu durante pouco mais de um ano.

 

Nos artigos que consultei n' O Tripeiro não recolhi qualquer referência à data em que havia sido instalada, por isso foi com grande alegria que descobri o texto escrito pelo próprio autor do automatismo no jornal O Nacional, datado de maio de 1846 mas apenas publicado em Julho. Ainda nesse mês, no dia 13, o presidente da Comissão Municipal, José Passos juntamente com Filipe José de Almeida, Martins dos Santos e Ribeiro Pereira ali se deslocaram em vistoria.

 

Eis então o relato sobre o funcionamento do mecanismo, pelo punho do seu autor:

«Sr. Redator, - Nem tudo será eivado do frenesi do século, nem tudo será política no nosso reino. Nesse vórtice imenso em que giramos, onde mais vezes se batem as paixões que os interesses do país, também alguma cousa há-de surgir de verdadeira utilidade. O Porto acaba de fazer uma aquisição desta espécie, e por fortuna minha coube-me a mim o seu desempenho. Aí tem ele uma meridiana sonante, aí tem ele portanto satisfeita uma das suas grandes necessidades.

A simples meridiana é uma máquina demasiado compreensível e de fácil obra, mas não assim se este instrumento se encarrega de transmitir a hora que marca para um ponto longínquo por meio do toque de sinos. A meridiana que hoje tem o Porto pratica isto.

Acha-se ela colocada no magnífico e a todos os respeitos muito apropriado edifício da torre dos Clérigos, e a seguinte é a descrição abreviada do seu maquinismo e efeitos.

Passando o sol pela linha norte-sul da cidade (segundo a frase ainda hoje recebida) um de oito delgados cordões feitos de quatro fios de retrós preto, que se acha na mesma linha, se queima quando ferido pelo foco de uma lente, e imediatamente pelos espaço de quase dous minutos, se faz ouvir um repique em muitos sinos, e a detonação de um morteiro. Isto se passa na altura de 52 metros, ou pouco mais ou menos 235 palmos acima da base da torre, e portanto dá aviso à maior parte da cidade de quando é o seu verdadeiro meio-dia, e convida a todos para que regulem os seus relógios talvez duzentas e tantas vezes por ano que tantos são os dias presumíveis em que a atmosfera do Porto deixa ver a face do sol, devendo ao mesmo tempo fazer-se uso das tábuas de equação, que muito bom seria, Sr. Redator, se um qualquer periódico nos desse a sua publicação de futuro para mais comodidade dos habitantes.

Não obstante estar a meridiana colocada fora da torre: e distante da máquina que tange os sinos, cousa de 50 palmos [11m], e esta afastada deles uns 102 [22,44m], o que tornou um pouco difícil a comunicação deste lado; tudo se venceu, e uma vez truncado o cordão que se expôs à ação dos raios solares convergidos pela lente, os sinos tocam, ecoa o morteiro, e a peça que contem os 8 cordões foge da sua posição, para depois de dar tempo à deslocalização do foco, vir oferecer, por um outro movimento que faz sobre o seu eixo, um novo cordão que no outro dia há-de repetir esta mesma cena. E porque são 8 os cordões, e 8 também os dias de corda que aquela máquina tem, só depois de sectionado [sic] o ultimo cordão, é que é preciso refazê-la de novos cordões, e de nova corda que é necessário dar-lhe.

 


Pormenor de uma fotografia de Frederick Flower onde podemos ver a torre dos clérigos na altura em que a meridiana ali se encontrava instalada.

Se alguma meridiana semelhante a esta existe na Europa ou na América, eu não tenho disso conhecimento, e se as leis da mecânica não fossem circunscritas a certos respeitos, e por isso mais fáceis de se repetirem os seus resultados do que é possível renovarem-se as figuras do Caleidoscópio, eu não teria dúvida em sustentar que de certo outra meridiana igual não há, por isso que ela é de minha pura invenção, e execução no mais delicado de suas partes. E ainda me lisonjeio, que tão feliz fui em suas combinações, que nenhuma me falhou, e não tive que perder uma única peça, salvo as que enjeitei por menos consistentes, e ainda algumas outros em consequência do novo acordo tomado para serem tangidos mais sinos, e não um só.

 

Convencido como estou de que a minha obra é de inquestionável utilidade, não quererei para mim o exclusivo dos ganhos que daí possam provir; e por isso direi que o Porto a deve à Exma. Câmara Municipal que a mandou fazer, aos seus comissionados, os Ilmos. Srs. António Alves de Sousa Guimarães, e Manuel Joaquim Gomes Guimarães que comigo trataram; a S. Ex.ª o Sr. bispo da diocese, aos Ilmos mesários da Irmandade dos Clérigos e seu secretário o Ilmo. Sr. D. Francisco da Piedade Silveira, que prestaram o edifício, e finalmente aos meus amigos os Ilmos. Srs. Francisco Joaquim da Silva Natividade, João Vieira Pinto, Luís Ferreira de Sousa Cruz, que particularmente me prestaram todo o auxílio de que careci para a levar a cabo, e outras mais pessoas que muito me obsequiaram, e que por não ser minimamente prolixo deixo de mencionar, e a quem peço desculpa, e agradeço.

Sou, Sr. Redator, de V. muito atento venerador e criado,

Veríssimo Alves Pereira -  Porto 10 de Maio de 1846»

 

Os portuenses que este aparelho conheceram e eram ainda vivos em 1908, escreveram nas páginas d' O Tripeiro várias notas das quais destaco uma extraída da correspondência de F (ano 1, p. 176):

«... a tal meridiana, era um morteiro, carregado com pólvora grossa, chamada de pedreira, por ser da tal que servia para carregar os tiros abertos por meio de broca nas pedreiras, e que cheirava mal a três quilómetros de distância, e próximo desse morteiro estava colocado um pequeno aparelho com uma lente cujos raios à hora do meio-dia convergiam para o rastilho que estava à entrada do ouvido do morteiro, inflamavam a pólvora dele, e zás... pum-um-um! Toda a gente que trazia relógio no bolso, puxava por ele, não para saber se era meio-dia, que anunciava o tal pum!, mas para ver se os jornais que traziam a equação do tempo, prevenindo do minuto ou segundos em que o morteiro fazia pum, antes ou depois do meio-dia verdadeiro, falavam certo.

Escusado será dizer que nos dias em que não havia sol a descoberto, não havia meio-dia. Três, quatro, ou mais dias de chuva ou de névoa, como acontece durante o inverno, e a respeito do meio-dia... nicles!

Ora como o tal pum ao meio-dia fazia estremecer as pedras da tal varanda onde colocavam os tais paus com os sacos de café (salvo seja) e  ia-as desconjuntando pouco a pouco, resolveu quem disso tratava, suprimir o ta pum! com grave desgosto para os pedreiros e carpinteiros principalmente, que tinham grande simpatia pelos relógios de sol, que só regulavam quando havia sol, mas que eles colocavam sobre uma pedra, para quando desse o tiro na Torre dos Clérigos, irem ver se estavam certos!...»

 

Quanto à observação sobre os paus e o sacos de café, essa será desenvolvida na publicação seguinte. Acreditem que é deveras interessante para sabermos mais um pouco de como se regulava o mundo do século XIX com os seus sucessivos avanços tecnológicos, mas ainda com bastantes limitações!

Viriato


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Originalmente publicada em 07.02.2017 no blog denominado A Porta Nobre.

terça-feira, 26 de março de 2024

Uma nova casa para Deus... mas emprestada!

Esta publicação é recuperada de um blog que possuí, inteiramente dedicado ao convento de S. Domingos. Mais publicações destas surgiram nesta Gazeta, conforme a vontade me for proporcionando a escrevê-las.

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Caro leitor, vamos agora dar um salto de algumas centenas de anos para a frente na história da casa dominicana portuense! Este salto tem dois objetivos: o primeiro, não enfastia-lo com latim, o segundo, dar a conhecer parte de um documento que creio inédito e que encontrei durante as minhas pesquisas.


Mas primeiro uma pequena introdução: o ano é o de 1778, o dia o de 24 de Abril, o acontecimento: um incêndio na igreja dominicana que destrói o seu telhado. E sinto-me compelido a fazer uma retificação: Todas ou quase todas as fontes escritas que a este incêndio se referem dão-no como acontecido em 1777. Não, não foi. Foi na data atrás referida. Pedro Vitorino é, segundo creio, a única voz que clama no deserto. Porque estou tão certo da data? Porque um indivíduo holandês morador na cidade à época a registou (bem como outras datas bastante interessantes para a história do Porto). Com certeza que com isto não é minha pretensão condenar todos os que deram como certo o ano de 1777, posto que se tratará de um erro inocente e o próprio autor dele - Agostinho Rebelo da Costa - não o terá feito com dolo. Ainda assim, ela repete-se e repete-se, correndo o risco de se tornar verdade... (ver nota no final)


O documento que refiro é um inventário de bens em sequestro exigido como condição pela rainha D. Maria I aquando da entrega da antiga igreja da Ordem Terceira de São Domingos aos frades Pregadores, onde constam os bens que ficavam ao cuidado destes. Desta forma ficou o templo sendo a igreja oficial do convento de S. Domingos (mais tarde a outra igreja seria reduzida a armazém). A Ordem Terceira, essa, fora já dada como extinta em 1755 como corolário de um processo que "cheirou mal" desde o início e que não se sabe muito bem quando começou embora tenha para mim que a coisa começou a azedar ainda no final do século anterior... Bem, mas quem não gostou nada da entrega daquele templo aos frades foi a Ordem da Trindade, sucessora da terceira dominicana, que se achava dona de tudo aquilo e que reclamou para si durante mais de 50 anos a propriedade ainda que sem sucesso. Chegaram mesmo, em 1835, a pedir como indemnização a igreja velha dos dominicanos, mas isso são histórias para depois...

carneiro da igreja dos terceiros, escavada em 2012/2013, no âmbito da reconversão do chamado eixo Mouzinho Flores


Vamos então ao documento e vejamos, abreviadamente, qual era o conteúdo daquele templo desenhado por Joaquim Cardoso Vitória Vilanova (era a imagem de rosto deste blog, que o leitor pode ver aqui):


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Bens que estavam em sequestro em poder dos religiosos dominicanos na igreja nova


Capela-mor: seis anjos estofados; uma imagem de Nossa Senhora por cima da banqueta; da parte do Evangelho a imagem de S. Francisco e da parte da Epístola a imagem de S. Domingos; duas credencias (sic) de talha douradas; cinco pedras de ara dos altares; duas imagens de santos entre varandais; o altar da parte do Evangelho com sua pedra de ara e uma imagem de Santa Margarida e outro altar ao pé também com pedra de ara com a imagem de Santo António que nele se achava; o altar da parte da Epístola com as imagens de São José e Santa Ana e pedra de ara, no altar imediato as imagens de Nossa Senhora da Conceição, Beata Osana e Beata Colomba com pedra de ara, que são as mesmas cinco que acima se fez menção.


Corpo da igreja: quatro quadros grandes com caixilhos dourados de talha, pregados dois de cada lado; em todo o corpo da igreja de nichos e em cada um deles sua imagem de diversos santos de 6 palmos de altura; um anteparo da porta principal; no coro um órgão desconcertado, e com falta de vários canudos [hoje na igreja matriz de Avintes]; seis varandas no corpo da igreja, de talha dourada, e quatro na capela-mor; o espaldar e grades onde se juntavam os irmãos da mesa, tudo arruinado; dois confessionários de pau; duas bacias somente em dois altares de lançar a água do lavatório [lavatório que está atualmente no jardim de S. Lázaro]; doze sacras dos altares; cinco estantes de pau dos mesmos; mais duas pedras de ara além das cinco já ditas.


Sacristia: dois caixões com suas chaves de guardar os paramentos por cima dos quais dois espelhos grandes, cada um dividido em três; um retábulo ou oratório de talha dourada com seis nichos e em cada um sua relíquia, com seu frontal de talha dourada; quatro bandeirolas mais duas pequenas de talha dourada por cima das vidraças; uma mesa de mármore com pé do mesmo de se porem os cálix no meio da sacristia; uma guarda-roupa embutida na parede de guardar os ditos cálix; um espaldar de talha em feitio de resplendor [e] em ele uma cortina de seda muito velha; uma chave do sacrário pequena perfumada de prata com sua fita de peso muito usada; duas palas da porta do sacrário, uma de seda de ouro guarnecida de gabões do mesmo fio, e outra de damasco branco muito usada guarnecida de renda de ouro do mesmo uso; as chaves que dizem respeito à porta da igreja, sacristia e cemitério; a casa do cemitério com duas lojas a ela pertencentes; a casa do despacho que confronta com a sacristia e outra por baixo desta; altar principal do mesmo cemitério e nele as imagens seguintes - um santo do tamanho de 1 palmo e S. Domingos, um Senhor dos Passos com túnica roxa, cruz às costas e resplendor de folha dourada, de estatura de um homem; dentro do altar uma imagem do Santo Cristo morto, da mesma estatura, com dois véus, coberto de garça, colchão, e um lençol, e duas almofadinhas, e um véu de tafetá roxo de o cobrir; um frontal de tábua pintado e frisos dourados, dois castiçais de pau pequenos e velhos; seis jarras de pau e destas quatro douradas, e tem ramos(?) entre os quais dois são de papelão prateados; quatro lâmpadas de latão de dois palmos de alto; em um altar colateral da parte do Evangelho o Senhor amarrado à coluna, com uma toalha de linho, com renda e resplendor de folha dourada com frontal de tábua pintada e franja dourada; da parte da Epístola outro altar com a imagem de Ecce Homo com toalha de linho com renda e uma capa de damasco encarnada velha e frontal de tábua, e franja dourada, dois painéis de pano pintado; um de S. Domingos e outro de S. Caterina de 6 palmos de altura com caixilhos muito velhos de talha; oito cruzes com resplendor e pontas de talha dourada de 6 palmos de alto pregada nos varões dos arcos do corpo do cemitério, no fim do mesmo cemitério um altar com retábulo dourado, muito velho, e seis imagens; três escadas do serviço da igreja, e as grades das frestas, e altares com vinte e três varões de ferro delgados, sendo as grandes dezassete, mas algumas quebradas mais quatro varões de ferro das alcatifas da capela-mor; nove ferros de vidraças, porque sendo catorze só se entregaram cinco; duas andarelas(?) de metal dos altares, e um jarro de estanho velho, e uma caldeira de água benta de estanho com seu exópo(?) do mesmo, com uma asa quebrada, e a outra dita de parede com seu exópo?; uma estante de pau pequena; duas cortinas de seda de ouro, de dentro da porta do sacrário, um corporal pequeno com sua renda; uma bandeirinha pequena de S. João bordada de seda; uma mesa de pau pintada de preto usada, que se acha na sacristia e se não podia tirar, sem se quebrar; na mesma um armário pintado de azul de castanho com lotes para papeis, que pela mesma razão, se não tirou; uma lâmpada de latão pequena de palmo, e meio velha; um armário velho detrás da tribuna grande e de castanho...

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Com certeza que a informação que consta deste inventário não interessará, na sua maioria, para o estudo da história. Contudo não deixa de apresentar o texto preciosas ainda que escassas descrições de como estava organizado o edificado que outrora pertencera à ordem terceira e que em 1778 passou para as mãos dos dominicanos, passando a ser partir dessa data a sua igreja conventual de facto.

pormenor do referido carneiro (local onde se colocavam os cadáveres) . a ter sido inteiramente intervencionado, todo o topo da rua Ferreira Borges revelaria certamente mais pormenores históricos, nomeadamente aquedutos, sobre os quais procurarei falar em devido tempo...


Do edificado que tudo isto albergou resta o que se vê nas imagens que apresento, colhidas quando há poucos anos o local foi pesquisado arqueologicamente. Como vemos, apenas parte do antigo carneiro da igreja ainda lá se encontrar e nela alguns dos seus "ocupantes"; aqueles que há centenas de anos escolheram o templo para sua última morada e que nem poderiam imaginar que no futuro estavam condenados a ser pisados por transeuntes e toda a sorte de ululantes e poluentes veículos movidos por motor de combustão interna...

Viriato


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NOTA: Mais recentemente, pude corroborar esta data consultando um livro do cartório franciscano depositado na BPMP, pois nele se encontram transcritos vários documentos referentes à extinção da Ordem Terceira de São Domingos.

Bibliografia: Petição da Celestial Ordem da Trindade (ADP)

Agradecimento: A Gabriel Silva, leigo dominicano, pela informação sobre o órgão da igreja dos terceiros.

domingo, 17 de março de 2024

Consultando os 'Almanaks'

No meado do século XIX, o sistema de ataque aos incêndios na cidade do Porto regia-se ainda pelos rudimentares toques dos sinos das igrejas. Dependendo do local onde ocorria o sinistro, determinada igreja tocava uma quantidade estipulada de badaladas. Por sua vez existiam, desde 1853 e em todos os pontos onde se deveriam tocar os sinos, pequenas caixas de metal que identificavam a quantidade de badaladas, associando-as a determinado local. As chaves das caixas eram detidas pelos bombeiros municipais, que abrindo-as tinham acesso ao fio que subia dentro do cano de ferro que o protegia até ao sino. Cinco delas ainda hoje subsistem. Outras, como a que apresento abaixo numa imagem da igreja de Santo Ildefonso, há muito foram retiradas.


Os toques, conforme se podem consultar por exemplo nos Almanaks da época, eram assim distribuídos: 10 badaladas tocavam-se na igreja da Sé, estando de guarda a estação do largo da Sé, a igreja do Colégio, mesma estação, igreja de Santa Clara, ocorria a bomba da Casa Pia, igreja do Terço, mesma bomba, S. Bento das Freiras, ativava a bomba do Paço do Concelho e por fim a igreja da Misericórdia a bomba da Caixa FIlial do Banco de Lisboa, a S. Domingos. 11 badaladas eram tocadas nas igrejas de Santo Ildefonso estação da Casa Pia, igreja de Santa Catarina (capela das Almas?), ativava a estação da Praça do Bolhão, da Trindade a mesma estação e a das Órfãs de S. Lázaro ativava uma bomba que estava no jardim do mesmo nome. 12 badaladas era exclusivo da igreja do Bonfim, ativando a bomba do largo do mesmo nome; 13 ativava a bomba estacionada no largo do Priorado, igreja da Lapa a do Quartel de Santo Ovídio e a igreja do Carmo a bomba da Polícia Municipal, estacionada no Carmo. A igreja da Vitória, Taipas e Clérigos, dariam 14 badaladas, ativando a bomba da Cadeia as duas primeiras, e a que se encontrava na Praça do Anjo, a terceira. Com 15 badaladas temos as igrejas de S. Nicolau, S. Francisco e S. João Novo, que ativavam respetivamente as bombas da Alfândega, do Banco Comercial (a Ferreira Borges) e a do Tribunal da Justiça, a S. João Novo. Vamos agora às badaladas que correspondem a apenas uma igreja/uma estação, pelo que temos: igreja de Miragaia com 16 badaladas (estação da Porta Nobre), de Massarelos com 17 (estação do Cais Novo). Para a igreja de Campanhã (18 badaladas), Paranhos (19), Lordelo (20), Foz (21) e Vila Nova (22); não há indicação das bombas. E não era raro existir um incêndio em Vila Nova, a que respondiam mais de uma bomba, sendo que apenas uma, a primeira a chegar, ganhava o prémio... Mas este pormenor, embora nos choque, era já um avanço em relação à época anterior. Por exemplo, ainda em 1845, como tive oportunidade de comprovar no jornal O Nacional de 22 de agosto, quando deflagrava um incêndio várias igrejas tocavam ao mesmo tempo, apenas contribuindo para a confusão e consequentemente para o retardar do auxílio.


Um outro curioso dado que nos dá, neste caso, o Almanak para o ano de 1866-67 (publicado em 1865), é o dos sinais que se faziam na torre do Palácio da Bolsa no intuito de alertar para quais os vapores que se encontravam na barra. Os sinais distribuem-se da seguinte forma:

Um vapor ao norte – galhardete azul

Dois vapores ao norte – galhardete azul e balão por cima

Três ou mais vapores ao norte – galhardete azul e balão por cima*

Um vapor ao sul – Galhardete vermelho

Dois ditos ao sul – galhardete vermelho com balão por cima

Três ou mais vapores ao sul – galhardete vermelho e balão por baixo

Dois vapores ao norte e ao sul – Galhardete azul e Galhardete vermelho

Três vapores ao norte e ao sul - Galhardete azul e Galhardete vermelho, e balão ao meio.

Entrou o vapor do sul – Galhardete vermelho e branco

Entrou o vapor do norte – Galhardete azul e branco

Saiu um vapor português – galhardete vermelho, e Galhardete azul e branco por baixo

Saíram dois vapores portugueses – Galhardete vermelho, e galhardete azul e balão por cima

Saiu um vapor estrangeiro – Galhardete azul e galhardete vermelho e branco

Saíram dois vapores estrangeiros – galhardete azul e galhardete vermelho e branco e balão ao centro

Notas: O galhardete azul designava o norte e o vermelho o sul.

(* creio que será lapso por baixo, cf. vapores ao sul)


Ficam assim apresentados, caro leitor, e sem pretensões a historiador, dois pequenos apontamentos que podemos descobrir quando mergulhamos na consulta de periódicos e outras publicações de igual modo interessantes e importantes, para se compor a imagem do Porto de oitocentos.

Viriato